Petição
EGRÉGIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE ESTADO
EMÉRITOS DESEMBARGADORES INTEGRANTES DA CÂMARA JULGADORA
AUTOS Número do Processo
RECORRENTE: Nome Completo
RECORRIDA: JUSTIÇA PÚBLICA
RAZÕES DE RECURSO DE APELACAO
1 - DO BREVE RESUMO DOS FATOS
O recorrente foi condenado por dita situação incursa nas penas do artigo 129, parágrafo 9, do Código Penal, tendo sido aplicada pena privativa de liberdade no importe total de 01 ano e 04 meses de reclusão, alem das custas processuais.
No entanto, a sentença deve ser reformada, a fim de que o processo seja anulado, conforme será demonstrado nas razoes recursais.
2 – DAS RAZOES RECURSAIS
2.1 - Da Nulidade do Feito
De início, vale destacar que o feito encontra-se eivado de nulidade, cuja decretação por este Egrégio Tribunal é medida de rigor.
Primeiramente, cumpre assentar que, por via de regra, as ações penais são públicas incondicionadas, cuja titularidade recai exclusivamente sobre o Ministério Público, que possui o dominus litis, aceitando-se somente a iniciativa privada nos casos de ação pública incondicionada quando houver inércia do Parquet, hipótese na qual se aceita a ação penal privada subsidiária da pública, sem que, no entanto, o particular se subrogue na posição de titular da ação, uma vez que o órgão ministerial pode retornar ao feito como parte principal caso julgue conveniente, nos moldes do art. 29 do CPP. A título de excepcionalidade, o Código Penal dispõe expressamente os casos em que a instauração da ação penal é privada ou condicionada à representação, não se vislumbrando tal hipótese nos crimes de lesões corporais, em nenhuma de suas espécies.
Entretanto, após a promulgação da Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais (Lei n. 9.099/95), os crimes de lesões corporais de natureza leve (CP, art. 129, §9º) e de modalidade culposa (CP, art. 129, §§ 6º a 8º) passaram a ser de ação penal pública condicionada à representação, ou seja, o Ministério Público só poderá atuar em busca da repressão penal após intenção manifesta do sujeito passivo ou de seu representante legal.
Todavia, o artigo 41 da Lei Maria da Penha afastou a aplicabilidade da Lei de Juizados Especiais, assim dispondo, in verbis:
Art. 41. Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei 9.099, de 26 setembro de 1995.
Diante da relativa incompatibilidade de normas, floresceu no meio jurídico a controvérsia com relação à condição de procedibilidade das ações penais nos crimes cometidos contra mulheres no âmbito doméstico ou familiar, existindo forte dissidência jurisprudencial. A doutrina, identicamente, não encontra uniformidade com relação ao tema, de modo que para autores como Guilherme de Souza Nucci, Luiz Flávio Gomes e Alice Bianchini, a ação penal é pública incondicionada. Por outro lado, sustentam a condicionalidade à representação os juristas Maria Berenice Dias, Paulo Rangel, Rogério Greco e Damásio de Jesus.
Em que pese o respeito devido aos que sustentam a incondicionalidade da ação penal nos casos abarcados pela Lei Maria da Penha, a Segunda Câmara Criminal deste Tribunal, por exemplo, tem propugnado o entendimento de que a Lei n. 11.340/2006, ao afastar a possibilidade de ajuizamento das demandas calcadas nesta norma perante os juizados especiais, não suprimiu a necessidade de representação da vítima se o resultado das lesões corporais provocadas pelo agressor for de natureza leve ou culposa, condicionando-se a deflagração da ação penal à vontade da vítima.
Neste norte é a lição de Maria Berenice Dias, in verbis:
Quando se insiste em acusar da prática de um crime e ameaçar com uma pena o parceiro da mulher, contra sua vontade, está se subtraindo dela, formalmente dita ofendida, seu direito e seu anseio a livremente se relacionar coma quele parceiro por ela escolhido. Isso significa o direito a liberdade de que é titular para tratá-la como se coisa fosse, submetida à vontade de agentes do Estado que, inferiozando-a e vitimizando-a pretendem saber com quem ela quer se relacionar – esua escolha há de ser respeitada, pouco importando se o escolhido é ou um não um ‘agressor’ – ou que , pelo menor, não deseja que seja punido.” (...)
Há um derradeiro argumento que põe por terra todas as tentativas de transformar a lesão corporal leve em delito de ação penal pública incondicionada. O Projeto de Lei 4.559/2004, que deu origem à Lei Maria da Penha, trazia o procedimento na fase policial e o procedimento judicial e de modo expresso afirmava (art. 30): Nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, a ação penal será pública condicionada a representação. No Senado é que houve exclusão do procedimento minuciosamente detalhado, que constava da versão originária do projeto. Do roldão foi excluído o dispositivo que colocaria uma pó de cal em toda a discussão que acabou surgindo.” – sem grifos no original. (A lei maria da penha na justiça: a efetividade da lei 11.340/06 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 123/125)
E do escólio de Damásio de Jesus, in verbis:
O art. 129 do Código Penal, que descreve o crime de lesão corporal, alterado pela Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006, a denominada Lei Maria da Penha, ganhou a seguinte redação em seu § 9.º:
"Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade:
Pena – detenção, de 3 (três) meses a 3 (três) anos".
A forma qualificada, embora aplicável também ao homem, visou principalmente dar maior proteção à mulher que se vê agredida no âmbito doméstico e familiar.
Nos termos do art. 16 da mesma lei:
"Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público".
Por sua vez, o art. 41 do novo estatuto determina que:
"Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei n. 9.099, de 26 de setembro de 1995" (Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais).
Diante das duas disposições, de indagar-se: a ação penal por crime de lesão corporal resultante de violência doméstica ou familiar contra a mulher é pública incondicionada ou pública condicionada à representação?
Haverá duas posições:
1.ª) a ação penal por crime de lesão contra mulher, resultante de violência doméstica ou familiar, é pública incondicionada, tendo em vista que o art. 41 da Lei n. 11.340/2006 excluiu, nesse caso, a aplicação da Lei n. 9.099/95, em que se inclui o art. 88, que previa a representação como condição de procedibilidade.
2.ª) trata-se de ação penal pública condicionada à representação (nossa posição).
Segundo entendemos, a Lei n. 11.340/2006 não pretendeu transformar em pública incondicionada a ação penal por crime de lesão corporal cometido contra mulher no âmbito doméstico e familiar, o que contrariaria a tendência brasileira da admissão de um Direito Penal de Intervenção Mínima e dela retiraria meios de restaurar a paz no lar. Público e incondicionado o procedimento policial e o processo criminal, seu prosseguimento, no caso de a ofendida desejar extinguir os males de certas situações familiares, só viria piorar o ambiente doméstico, impedindo reconciliações.
O propósito da lei foi o de excluir da legislação a permissão da aplicação de penas alternativas, consideradas inadequadas para a hipótese, como a multa como a única sanção e a prestação pecuniária, geralmente consistente em "cestas básicas" (art. 17). O referido art. 88 da Lei n. 9.099/95 não foi revogado nem derrogado. Caso contrário, a ação penal por vias de fato e lesão corporal comum seria também de pública incondicionada, o que consistiria em retrocesso legislativo inaceitável. Além disso, de ver-se o art. 16 da Lei n. 11.340/2006: não teria sentido falar em renúncia à representação se a ação penal fosse pública incondicionada.
A lei brasileira enfrentou o mesmo dilema no qual se viram envolvidas outras legislações: o do empowerment das mulheres. O início da persecução criminal e seu prosseguimento devem ser deixados nas mãos das mulheres ou o poder de decisão pertence somente ao Estado, sem a interferência daquelas? Aceita a primeira alternativa, sendo a ação penal de exclusiva iniciativa da vítima, sem interferência do Estado (ação penal privada), sua decisão de processar ou não o autor da violência e de prosseguir ou não com a persecução criminal pode derivar de inúmeros motivos e situações (reconciliação, vingança, medo, pressão, susto no agressor, trauma etc.). Sob outro aspecto, sabemos que, nas ações penais privadas, poucos são os casos de condenação. Além disso, deixar o poder de iniciativa só com a vítima enfraqueceria a política pública de minimizar esse mal social. Adotada a segunda opção, tornando a ação penal pública incondicionada, o episódio pode resultar em condenação do autor, o que, tratando-se de marido, ensejaria até a ruína da família.
Entre os dois caminhos, a lei brasileira escolheu o meio termo, desprezando as duas variantes – nem ao céu, nem à terra. Decidiu-se por uma posição intermediária, em que a ação penal não é exclusivamente privada nem pública incondicionada. Daí ter acolhido a opção da ação penal pública dependente da representação. Como consta do Guide for Law Enforcement Officials on "Effective Responses to Violence against Women", "a autodeterminação das mulheres deve ser um dos princípios que norteiam a atividade policial e da Justiça Criminal". (Da exigência de representação da ação penal pública por crime de lesão corporal resultante de violência doméstica e familiar contra a mulher. Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal, Porto Alegre , v.3, n. 13, p. 87-89, ago./set. 2006).
E por fim, dos ensinamentos de Paulo Rangel, verbis:
A Lei Maria da Penha inovou nesse aspecto e vedou a aplicação da Lei 9.099/95 no caso de violência doméstica, in verbis:
'Art. 41 da Lei 11.340/2006. Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995' (sem grifos no original).
Tal dispositivo legal, por si só, poderia levar o intérprete a pensar que a lesão leve, enquanto violência doméstica praticada por marido contra a mulher, por exemplo, passaria.a ser de ação penal de iniciativa pública incondicionada pois afastada está a aplicação da Lei 9.099/95 e, conseqüentemente, do seu art. 88 que condiciona à representação a lesão corporal leve e a lesão corporal culposa. Entendemos equivocada tal interpretação.
E as razões são as seguintes:
A uma, que quando a Lei de Violência Doméstica (Lei 11.340/2006) veda a aplicação da Lei 9.099/95 o que ela quer é vedar a aplicação dos institutos despenalizadores da composição civil e da transação penal, instrumentos que impediam a persecutio criminis em face do agressor.
A duas, que a própria Lei de Violência Doméstica admite que haja crimes de ação penal pública condicionada à representação exigindo que a ofendida, caso queira se retratar (o legislador usou a expressão renúncia, por engano), o faça somente na presença do Juiz, in verbis:
'Art. 16 da Lei 11.340/2006. Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público.'
Quer-se dizer: não é porque a vítima é a mulher, no âmbito doméstico, que as ações penais públicas dos crimes de que for vítima passarão todas a ser incondicionadas. Tanto que o legislador prevê a hipótese de retratação (em outra oportunidade vamos comentar o equívoco da expressão 'renúncia' neste dispositivo legal) por parte da ofendida.
Ademais, seria um contra sensu: quando fosse crime de lesão corporal de natureza leve contra a esposa, no âmbito familiar, seria de natureza pública incondicionada, mas quando fosse contra a mulher, fora do âmbito familiar (no trabalho, por exemplo), seria condicionada à representação. Ou ainda, se for víti¬ma o marido em casa, de uma agressão de sua esposa, seria pública condicionada. Ou seja, o mesmo crime teria dois tipos de ações penais dependendo de quem fosse a vítima: se a esposa, pública incondicionada; se o marido, públi¬ca condicionada à representação. Absurdo incomensurável.
A três, que seria desarrazoado entender que o crime de lesão leve contra a esposa pelo marido, no âmbito doméstico, seria de ação penal pública incondicionada, por força do afastamento da Lei 9.099/95 pelo art. 41 da Lei 11.340/2006, mas o estupro, por exemplo, nas mesmas circunstâncias, sendo a esposa pobre, seria de ação penal pública condicionada à representação (art. 225, §1°, I, e §2°, do CP). Em outras palavras: no crime mais grave (estupro) a ação penal seria pública condicionada e no mais leve (lesão corporal leve) seria incondicionada. Verdadeiro contra sensu.
O princípio da proporcionalidade estaria desrespeitado, além de verdadeira quebra da sistemática jurídico penal. O Estado faria uma grave intervenção máxima do Direito Penal na esfera das liberdades públicas por causa de uma lesão corporal leve, mas não o faria em se tratando de um estupro.
A quatro, que se o legislador tencionasse tornar pública incondicionada a ação penal no crime de lesão corporal leve teria feito expressamente. No entanto, limitou-se a diminuir a pena mínima de seis para três meses e majorar a pena máxima de um para três anos, como consta do art. 129 do CP, com a redação que lhe deu a Lei 11.340/2006.
A cinco, que o direito é um sistema harmônico que deve buscar sintonia com seus princípios informadores, pois em uma visão Kantiana de sistema podemos dizer que sistema é a unidade de conhecimentos diversos sob uma mesma idéia. O todo é, portanto, um sistema organizado e não um conjunto desordenado; pode crescer internamente, mas não externamente, tal como o corpo de um animal, cujo crescimento não acrescenta nenhum membro, mas, sem alter¬ar a proporção, torna cada um deles mais forte e mais apropriado aos seus fins (Kant, Immanuel. Crític…