Direito Civil

Atualizado 03/05/2024

Boa Fé

Carlos Stoever

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boa fé é a qualidade inerente aos atos jurídicos praticados por qualquer pessoa - seja em seus atos da vida civil, seja em um processo judicial - que indica estar ela agindo de forma hígida, íntegra e leal.

Ou seja: que ela não está agindo de forma a prejudicar alguém ou lograr alguma vantagem ou benefício indevido ou abusivo.

Para o advogado, a boa fé é algo primordial em sua atuação - exige também cautelas para com seu cliente, para evitar que seja induzido ao erro na narrativa daquilo que ele entender ter direito.

Vamos entender melhor o que é a boa fé no direito civil - com um foco especial em sua grande opositora: a má-fé.

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O que é o princípio da boa fé?

O princípio da boa fé é um preceito jurídico de direito civil, que estabelece que todas as pessoas devem agir de acordo com normas de conduta íntegra e leais, não agindo em abuso de direito ou buscando uma vantagem indevida.

Trata-se de um conceito jurídico fundamental no direito civil brasileiro, permeando todas as relações jurídicas - especialmente os contratos, que tem por alicerce a confiança mútua entre as partes.

Existem basicamente dois tipos de boa fé, conforme veremos a seguir: a boa fé objetiva e a boa fé subjetiva.

O que é a boa fé objetiva?

A boa fé objetiva é atrelada ao comportamento esperado pelas pessoas em suas relações jurídicas, estando baseada em valores como a confiança, a lealdade e a integridade.

Na prática, ela presume que as partes irão cumprir com aquilo que se propõem, e estão dispostas a realizar o negócio jurídico dentro dos termos contratualizados, sem ferir direitos de terceiros ou da parte contrária.

Isso significa que as partes estão agindo dentro dos parâmetros éticos esperados, com legitimidade e sem qualquer desvio de finalidade ou abuso de direito.

O que é a boa fé subjetiva?

Por sua vez, a boa fé subjetiva está relacionada com a intenção das partes ao celebrar um negócio jurídico, sendo legítima a expectativa de que todos estão agindo dentro da ética e do direito, podendo haver a convicção de seu comportamento é correto e legítimo, sem qualquer intuito de prejudicar à outra parte ou a terceiros.

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A boa fé no direito brasileiro

A boa fé no direito brasileiro está presente tanto nas relações de direito privado como nas de direito público.

No Código Civil Brasileiro, ela está prevista em diversos artigos, podendo destacar o Artigo 113, Artigo 167 §2º e Artigo 422, que assim dispõem:

Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.

...

Art. 167. É nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma.

...

§ 2 o Ressalvam-se os direitos de terceiros de boa-fé em face dos contraentes do negócio jurídico simulado.

...Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.

Já no direito público, a boa fé está prevista no Artigo 2º e no Artigo 4º da Lei nº. 9.784/99, que assim dispõem:

Art. 2o A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.

Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de:

...

IV - atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé;

...

Art. 4o São deveres do administrado perante a Administração, sem prejuízo de outros previstos em ato normativo:

...

II - proceder com lealdade, urbanidade e boa-fé;

Embora não esteja expressamente previsto na Constituição Federal, o princípio da boa fé é estudado pelo direito constitucional através do princípio da segurança jurídica e da moralidade.

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Como funciona a boa fé no direito do consumidor?

Toda a sistemática do direito do consumidor no Brasil está ligada à presunção de hipossuficiência do cliente nas relações de consumo, bem como à proteção de sua boa fé.

Com isso, são consideradas nulas e abusivas cláusulas contratuais que possam implicar em abuso da boa fé do consumidor - conforme prevê o Art. 51 inciso IV do Código de Defesa do Consumidor:

Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:

...

IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade;

Com isso, a aplicação do princípio da boa fé no direito do consumidor é algo bastante frequente, especialmente ao âmbito do Superior Tribunal de Justiça, que o aplica ao lado de outros princípios, como o da informação e da segurança jurídica, para analisar demandas consumeiristas, vejamos:

PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO DO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. PLANO DE SÁUDE. TRATAMENTO REALIZADO FORA DA REDE CREDENCIADA. REEMBOLSO. CLÁUSULA LIMITATIVA. NULIDADE. DEVER DE INFORMAÇÃO E BOA-FÉ CONTRATUAL. REEXAME DE MATÉRIA FÁTICO-PROBATÓRIA. SÚMULAS N. 5 E 7 DO STJ.

1. O Tribunal a quo concluiu, no caso, que a cláusula contratual que prevê a limitação do reembolso das despesas médico-hospitalares e honorários médicos não esclarece de forma objetiva e compreensível seus critérios para cálculo e que, por isso, viola o dever de informação ao consumidor e a boa-fé contratual.

2. A falta de impugnação, nas razões do recurso especial, ao argumento do acórdão recorrido impede o conhecimento do apelo nobre. Incidência da Súmula n. 283/STF.

3. A análise das circunstâncias fático-probatórias da causa é vedada no âmbito desta Corte, conforme os enunciados das Súmulas n. 5 e 7 do STJ. Agravo improvido.

(AgInt no AREsp n. 2.089.701/SP, relator Ministro Humberto Martins, Terceira Turma, julgado em 28/8/2023, DJe de 30/8/2023.)

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Como funciona a boa fé na Administração Pública?

Ao âmbito da Administração Pública, temos que sempre está em jogo o interesse público, o qual deve ser observado tanto pelos agentes públicos como pelo cidadão administrado.

Vimos acima que a Lei nº. 9.784/99 prevê a incidência do princípio da boa fé tanto para o gestor público como para o particular, na relação com a coisa pública.

Nestes casos, entende-se que há uma finalidade maior, que é a preservação da coisa púbica, acima de quaisquer interesses privados.

É o caso, por exemplo, da análise do dever que o cidadão tem de devolver valores recebidos indevidamente, pagos pela Administração Pública - onde a análise da boa fé define se há ou não o dever em devolver, conforme já decidiu o STF:

AGRAVO REGIMENTAL EM MANDADO DE SEGURANÇA CONTRA ATO DO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. DIREITO ADMINISTRATIVO. DEVOLUÇÃO DOS VALORES REFERENTES AOS QUINTOS E AO PERCENTUAL DE 10,87% (IPCr). IMPOSSIBILIDADE DE RESTITUIÇÃO. VANTAGEM CONCEDIDA POR INICIATIVA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E EM DECORRÊNCIA DO CUMPRIMENTO DE DECISÕES JUDICIAIS. PERCEPÇÃO DE BOA-FÉ. NATUREZA ALIMENTAR DA VERBA. SEGURANÇA CONCEDIDA PARCIALMENTE. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO.

1. As quantias percebidas pelos servidores em razão de decisão administrativa dispensam a restituição quando:

(i) auferidas de boa-fé;

(ii) há ocorrência de errônea interpretação da Lei pela Administração;

(iii) ínsito o caráter alimentício das parcelas percebidas, e

(iv) constatar-se o pagamento por iniciativa da Administração Pública, sem ingerência dos servidores. Precedentes.

2. In casu, o TCU determinou a devolução de quantias recebidas por servidores do TJDFT, relativas ao pagamento de valores referentes ao percentual de 10,87%, em razão de decisões judiciais, bem como ao pagamento do valor integral de função comissionada ou cargo em comissão cumulado com remuneração de cargo efetivo e VPNI, devido à decisão administrativa do Tribunal de Justiça interpretando a Lei 10.475/2002. 3. Em sede monocrática, concedeu-se parcialmente a segurança pleiteada UNICAMENTE para impedir qualquer determinação do Tribunal de Contas da União no sentido de devolução das quantias recebidas a maior, por parte dos substituídos do sindicato impetrante. 4. Consoante firme entendimento desta Suprema Corte, descabe a “restituição de valores percebidos indevidamente em circunstâncias, tais como a dos autos, em que o servidor público está de boa-fé” (MS 25.921/DF-AgR, Rel. Min. Luiz Fux, PRIMEIRA TURMA, DJe de 28/9/2015). É que o reconhecimento posterior da ilegalidade de vantagem remuneratória “não determina, automaticamente, a restituição ao erário dos valores recebidos, salvo se comprovada a má-fé do servidor, o que não foi demonstrado nos autos.” (MS 26.085, Rel. Min. Cármen Lúcia, PLENO, DJe 13/6/2008). 5. Especificamente em relação aos quintos/décimos, o próprio Supremo Tribunal Federal expressamente ressaltou sua ilegalidade, porém modulou os efeitos decisórios a fim de proteger os princípios da boa-fé e da segurança jurídica (RE 638.115-ED-ED, Min. Rel. Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, DJe em 31/1/2020). 6. Agravo regimental a que se NEGA PROVIMENTO.

(MS 31244 AgR-segundo, Relator(a): LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 22-05-2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-151 DIVULG 17-06-2020 PUBLIC 18-06-2020)

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Conclusão

Ao longo de toda nossa experiência na advocacia, vimos que o princípio da boa fé, embora não seja um princípio constitucional, possui elevado status no direito brasileiro - sendo um pilar em toda e qualquer relação jurídica.

Isso porque há o dever do juiz de presumir a boa fé das partes, bem como dos contratantes em quaisquer relações jurídicas - e, por isso ainda, há uma forte reprimenda àqueles que agem de má-fé, podendo ir desde a nulidade de cláusulas contratuais e negócios jurídicos, até mesmo à imposição de multas processuais e a condenação do servidor por improbidade administrativa.

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Carlos Stoever

(Advogado Especialista em Direito Público)

Advogado. Especialista em Direito Público pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e MBA em Gestão de Empresas pela Fundação Getúlio Vargas. Consultor de Empresas formado pela Fundação Getúlio Vargas. Palestrante na área de Licitações e Contratos Administrativos, em cursos abertos e in company. Consultor em Processos Licitatórios e na Gestão de Contratos Públicos.

@calos-stoever

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