Petição
EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ DE DIREITO DA $[processo_vara] VARA CÍVEL DO FORO CENTRAL DA COMARCA de $[PROCESSO_COMARCA] - $[PROCESSO_UF]
$[parte_autor_nome_completo], $[parte_autor_estado_civil], $[parte_autor_profissao], $[parte_autor_rg], $[parte_autor_cpf], residente e domiciliado $[parte_autor_endereco_completo],por seus advogados in fine subscritos – procuração anexa, vem, respeitosamente, perante V. Exa., com fulcro dos artigos 303 e 319 et seq, todos do Código de Processo Civil, combinados com o art. 6°, incisos VII e VIII, do Código de Defesa do Consumidor, propor a presente
AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER C/C REPARAÇÃO DE PERDAS E DANOS
em face de em face de $[parte_reu_razao_social], $[parte_reu_cnpj], pessoa jurídica de direito privado, com sede $[parte_reu_endereco_completo]pelas razões de fato e de direito doravante aduzidas:
I. DOS FATOS
O requerente é motorista parceiro da ré, empresa responsável pelo aplicativo de mobilidade urbana conhecido por “$[geral_informacao_generica]”.
Como se sabe, nessa modalidade de negócio, os motoristas se cadastram junto à ré, para terem acesso, pelo aplicativo, às demandas dos usuários interessados na contratação do serviço de transporte.
O objeto da atividade da ré, portanto e a rigor, é a intermediação de corridas e facilitação de pagamento, mediante licenciamento e uso do software.
Ao contrário do que se pensaria numa primeira análise, porém, o pagamento realizado ao motorista não é um percentual do valor pago pelo passageiro.
A remuneração da viagem é quantificada com base na distância percorrida e tempo investido no traslado, partindo de uma tarifa base, em conformidade com os seguintes parâmetros:
Com efeito, conforme se percebe, em seus termos de uso, a remuneração é atrelada à efetiva distância percorrida. Tanto é que, quando do pagamento da remuneração do motorista, o aplicativo fornece a distância percorrida e a correspondente remuneração.
Sucede que, recentemente, vem o requerente notando que a distância computada pelo aplicativo para fins de pagamento destoa da distância calculada pelo GPS para o mesmo percurso.
À primeira vista, poder-se-ia pensar tratar-se de mera e irrelevante divergência decorrente de diferenças na própria precisão de referidos dispositivos.
Contudo, uma observação minuciosa da apuração da remuneração das viagens leva à aterradora conclusão de que o cômputo realizado pela ré é, em alguns casos, inferior à metade da distância apurada pelo GPS e, o pior, a ela nunca superior, o que, de plano, inibe qualquer ilação no sentido de trata-se de mera imprecisão, que operaria indistintamente a favor e em prejuízo da ré.
Para melhor ilustrar a questão, observe-se os dados de viagem realizada no dia 06/05/2020:
$[geral_informacao_generica]
Como se percebe dos prints extraídos diretamente dos registros do aplicativo, trata-se do trajeto compreendido entre a $[geral_informacao_generica], ambos em $[geral_informacao_generica].
O aplicativo considerou a distância de 2,2 km para apurar a remuneração do motorista, contudo, para idêntico percurso, a menor distância possível, apurada pelo GPS do Google Maps, é de 5,1 km:
$[geral_informacao_generica]
Ora, as imagens colacionadas evidenciam que, para fins de remuneração do motorista, o aplicativo considerou, apenas, 39% da distância efetivamente percorrida pelo motorista.
Semelhante erro foi praticado em viagem realizada no dia 23/05/2020:
$[geral_informacao_generica]
Para o trajeto, porém, o GPS do Google Maps apurou distância significativamente maior, uma vez que, à ocasião, houve desvios obrigatórios em razão de acesso fechado:
$[geral_informacao_generica]
Para não se tornarem repetitivos, anexam à presente pelo menos outras 24 viagens em que constatado o mesmo erro.
Isto posto, ressalta-se que o autor, à medida que constatou os erros, contatou, por telefone, a empresa ré.
Os atendimentos telefônicos, com seus inúmeros desvios, em sua maioria determinada por robôs, e dominada por mensagens gravadas, tomaram várias horas de serviços do requerente, que não obstante tenha demonstrado, em pormenores, o equívoco no cômputo da distância, não logrou ter seu pagamento revisto.
Nos contatos, a empresa ré mostrou-se pouco atenta às falhas do sistema e aos prejuízos causados ao motorista, afirmando-lhe que não revisaria o pagamento ou as ferramentas de mensuração, negando-se a fornecer quaisquer esclarecimentos a seu respeito, tampouco justificar as divergências apontadas.
Todavia, dos fatos colhe-se que a conduta da ré tem prejudicado o requerente, e como doravante se demonstra, viola os próprios termos de uso do aplicativo e atenta contra o equilíbrio econômico-financeiro do contrato.
DO DIREITO
II. DA COMPETÊNCIA DA VARA CÍVEL E DO PROCEDIMENTO COMUM PARA PROCESSAMENTO DA DEMANDA
Antes de descer à questão de fundo, porém, convém aclarar e demonstrar a competência desta MM. Vara Cível para processamento e julgamento da demanda.
Com efeito, bem se sabe que a competência dos juizados especiais é definida pelo valor da causa (art. 3°, I, Lei n° 9.099/95).
Contudo, o valor da causa não é o único critério para fixa-la, afinal, por expressa disposição constitucional (art. 98, I) e do próprio caput do art. 3° da Lei n° 9.099/95, prestam-se os juizados à resolução de demandas de menor complexidade.
Disso exsurgem dois óbices ao processamento desta demanda no juizado: 1) a impossibilidade de aferição do valor da causa e 2) eventual necessidade de prova técnica.
Isso porque, primeiro, o aplicativo da empresa ré não disponibiliza, ao motorista, os registros de seu efetivo percurso nas viagens, em que pese armazene referidos dados.
Com efeito, embora seja possível estimar a distância entre os dois pontos a partir do GPS do Google Maps, a aferição precisa da distância percorrida depende dos registros da ré, de que constam todas as viagens realizadas e os correspondentes percursos.
Referidos registros, portanto, são indispensáveis para quantificar, com precisão, a distância computada a menor em cada viagem, liquidando-se as diferenças devidas.
Assim, a necessidade de liquidação, não suportada pelo procedimento da Lei n° 9.099/95, impõe o processamento do feito nesta MM. Vara.
De outro lado, à vista do evidente mau funcionamento das ferramentas de apuração de distância do aplicativo, certo é que, no curso do feito, far-se-á necessária produção de prova técnica hábil a identificar e aclarar as falhas no sistema de pagamento da ré.
Embora se admitida, no juizado, a produção de prova simplificada, claro é que o procedimento não assegura o espectro de cognição probatória necessário ao deslinde da causa, o que pode prejudicar a pretensão do requerente, violando o princípio da inafastabilidade da jurisdição e do acesso à justiça.
Por essas razões, e sobretudo a fim de assegurar a plenitude probatória e cognitiva, de rigor o processamento do feito pelo procedimento comum.
III. DA APLICAÇÃO DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR
Noutro giro, forçoso pontuar que o motorista é, tanto quanto o passageiro, um usuário do aplicativo e que a ele se vincula por um contrato de adesão.
De fato, o motorista não é destinatário final do serviço de transporte.
Contudo, uma análise detida da relação triangular existente entre o aplicativo, o motorista e o passageiro elide a conclusão perfunctória de que não há relação de consumo.
E isso por duas razões: o motorista é destinatário final dos serviços da ré e, tanto quanto o passageiro, é vulnerável em face da empresa. Senão vejamos.
Como já apontado no tópico inaugural deste petitório, o aplicativo presta um serviço de intermediação de viagens e facilitação de pagamento.
Como efeito, a ré não presta um serviço de transporte. Fá-lo o motorista.
Por isso, não é o motorista destinatário final do serviço de transporte, mas o é do serviço de intermediação e facilitação de pagamento, prestado pela ré.
Ora, se a pessoa jurídica que adquire bem como destinatário final é considerada consumidor, há grave contradição e injustiça em assim não o considerar o motorista pessoa física que contrata um serviço de intermediação para suas viagens.
E nem se diga que o motorista adquire o bem para incorpora-lo à cadeia de produção, porque ninguém lhe negaria a condição de consumidor ao adquirir um carro, ainda que exclusivamente para as viagens, um serviço de intermediação financeira (como as “maquininhas”) ou um financiamento bancário para sustentar a atividade.
Com efeito, a se pensar nessas situações, nota-se que, ao adquirir o carro ou contratar o serviço bancário, independente do fim com que o faça, é o motorista tão vulnerável quanto qualquer consumidor e adquirirá idêntico bem – de consumo - a este destinado, sujeitando-se aos mesmos abusos que a legislação consumerista busca reprimir.
À luz do modelo de negócio explorado pela ré, a situação não é diversa, afinal, o motorista contrata o serviço de intermediação e facilitação de pagamento que poderia ser prestado por um banco ou outra instituição, e que, como em qualquer dessas, é prestado em larga escala, em condições não paritárias, e para o mercado em geral, o que evidencia sua natureza de bem de consumo.
Ademais, há uma identidade entre o serviço prestado pela ré ao motorista e ao passageiro. Com efeito, tanto para o motorista quanto para o passageiro, a ré intermedia a contratação da viagem e facilita o pagamento. De outro lado, o motorista e o passageiro, ambos pessoas físicas, vinculadas ao aplicativo por um contrato de adesão e inseridos numa relação de bases não paritárias (porque economicamente vulneráveis em face da empresa ré, que concentra o poderio para controlar unilateralmente a relação) adquirem o serviço – de intermediação e facilitação, não de transporte - como destinatários finais.
Sob a perspectiva do serviço prestado pela ré, nada há que diferencie o motorista do passageiro, que se encontram em pé de igualdade entre si – mas de desigualdade em face do aplicativo – e, por isso, o CDC a ambos – ou a nenhum - há de socorrer, a fim de concretizar o princípio da isonomia.
Por essa razão, há grave injustiça em se negar, ao motorista, a mesma proteção destinada àqueles que, tal como ele, adquirem, por contrato de adesão, o serviço prestado pela ré.
Isso leva ao segundo aspecto do raciocínio: a vulnerabilidade.
Como cediço, a vulnerabilidade é o ponto nevrálgico da relação de consumo (art. 4°, I, do Código de Defesa do Consumidor), porque, ao mesmo tempo em que caracteriza a relação de consumo, justifica a relevância do microssistema protetivo.
E, de fato, é despiciendo grande esforço argumentativo para se concluir que a mesma vulnerabilidade que sujeita o passageiro a uma condição não paritária em face da ré afeta, em igual sentido e medida, o motorista.
Primeiro, porque é o motorista tecnicamente vulnerável, já que não tem qualquer domínio sobre as minúcias do serviço de intermediação e facilitação de pagamento. Não dispõem os motoristas de um departamento de finanças, vendas ou de tecnologia para manter a paridade com os prestadores do serviço. São tão vulneráveis quanto o seriam perante qualquer instituição financeira. Muitos sequer dominam as ferramentas e meandros tecnológicos do serviço.
Inclusive, uma simples leitura dos termos de uso já revela que a empresa ré disponibiliza informações extremamente vagas e rasas sobre a natureza de suas ferramentas e critérios de intermediação e facilitação de pagamento, o que torna o motorista, tanto quanto o passageiro, sujeito a toda sorte de abusos e deslealdades contratuais, porque à carência de conhecimento técnico se soma a falta de acesso à informação do serviço prestado pela ré.
Ainda, não se olvide que a empresa ré é uma startup e tem um modelo de negócio pautado em conhecimentos tecnológicos que a grande maioria dos brasileiros jamais terá condições de apreender.
Segundo, é o motorista economicamente vulnerável, porque depende do aplicativo para contratar com seus passageiros e não tem poder econômico para fazer concorrência com a empresa ré ou mesmo para resistir aos seus abusos e à condução unilateral e autoritária da relação contratual. Outrossim, os pagamentos do passageiro são destinados à empresa, não ao motorista, que, por isso, sequer pode barganhar melhores condições contratuais.
E, nesse ponto, diga-se, en passant, que a liberdade de mercado é uma ilusão, porque ao motorista não é dado exercer sua atividade sem o aplicativo, já que a lei lhe exige uma concessão administrativa e encargos – aliás, não exigidos dos aplicativos de mobilidade – que o impedem, em absoluto, de praticar os mesmos preços da empresa ré.
De fato, a liberdade de mercado existe para os aplicativos, que acirraram a concorrência entre eles e as empresas que até então constituíam verdadeiros cartéis para domínio do segmento, avanço econômico que não se pode negar e que engendrou uma miríade de benefícios para a coletividade.
A liberdade, porém, não brilha para os motoristas, como brilha para os aplicativos. Os motoristas concorrem entre si, no "submercado" criado dentro dos aplicativos, mas não têm condições de concorrerem com os próprios aplicativos, que dividem, entre si, o mercado real do setor.
Não são, portanto, players (o que justificaria a aplicação do Código Civil), mas consumidores dos serviços prestados pelo aplicativo.
Terceiro, o motorista é juridicamente vulnerável, porque se vincula à ré por um contrato de adesão, tão extenso quanto vago, que é concebido e alterado unilateralmente, ao exclusivo arbítrio da ré e de seus interesses lucrativos, inexistindo qualquer margem de liberdade contratual por parte do motorista, que sequer tem condições de compreender a maioria de seus termos.
A autonomia da vontade, para o motorista, restringe-se à decisão de aderir ou não aos termos do aplicativo. Contudo, se pretende atuar no setor, senão a adesão, opção diversa não lhe assiste.
E não se argumente que poderia o motorista, se insatisfeito, optar por outro aplicativo. De fato, podê-lo-ia. Mas não poderia, por sua conta e risco, concorrer com os próprios aplicativos. Se essa possibilidade fosse factível, e somente então, poder-se-ia cogitar da autonomia da vontade, porque haveria barganha.
Enquanto, porém, a liberdade de concorrência dos motoristas se der, unicamente, dentro dos limites dos próprios aplicativos de mobilidade urbano e do submercado por eles gerenciado, não há falar em paridade ou equilíbrio contratual, tampouco autonomia da vontade.
À vista de tudo isso, não se pode negar, ao motorista, o microssistema protetivo do Código de Defesa do Consumidor, concebido, justamente, para reequilibrar os polos de uma relação jurídica fundada na vulnerabilidade.
IV. DA INADMISSIBILIDADE DOS ERROS DE MEDIÇÃO DE DISTÂNCIA DO APLICATIVO
IV.I. DA VIOLAÇÃO DOS TERMOS DE USO E A ASSUNÇÃO DE RESPONSABILIDADE DA RÉ
De acordo com uma recente atualização dos termos de uso, a remuneração do motorista, que até então era feita a partir de um percentual do valor pago pelo passageiro, passou a ser quantificada a partir da “distância percorrida”. Veja-se :
Ora, a definição de “distância percorrida” não comporta interpretações.
Assim como, no conceito de tempo decorrido, 10 minutos serão 10 minutos de qualquer relógio, no de distância percorrida, 1 km é o 1 km em qualquer dispositivo de medição.
O fato de ser a ré quem mede a distância não lhe atribui a prerrogativa de estimar ou simular a distância. Se pretendesse fazê-lo, dos termos de uso deveria fazer constar “distância estimada” ou expressão congênere.
Se, porém, adotou um critério objetivo (distância percorrida), a ele deve ater-se, aferindo-o objetiva e não subjetivamente, sob pena de violar os …