Petição
EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ DE DIREITO DA $[processo_vara] VARA CÍVEL DO FORO REGIONAL de $[PROCESSO_COMARCA] - $[PROCESSO_UF]
$[parte_autor_nome_completo], $[parte_autor_estado_civil], $[parte_autor_profissao], $[parte_autor_rg], $[parte_autor_cpf], residente e domiciliado $[parte_autor_endereco_completo], por seus advogados in fine subscritos – procuração anexa, vêm, respeitosamente, perante V. Exa., com fulcro dos artigos 319 et seq, todos do Código de Processo Civil, propor a presente
AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER C/C INDENIZAÇÃO DE DANOS MORAIS E MATERIAIS
em face de $[parte_reu_razao_social], $[parte_reu_cnpj], pessoa jurídica de direito privado, com sede $[parte_reu_endereco_completo] pelas razões de fato e de direito doravante aduzidas:
I. DOS FATOS
A ré é empresa provedora do jogo eletrônico mobile denominado “$[geral_informacao_generica]”, que opera na modalidade multiplayer, isto é, com vários jogadores conectados na mesma partida pela internet.
No universo do jogo, que tem uma notável comunidade no Brasil, são comercializados itens de personalização e performance dos personagens, que passam a integrar, de forma permanente, o patrimônio do usuário e são cotados no próprio mercado do jogo.
Pois bem, o requerente é usuário do jogo desde o início de suas atividades no país e o acessava por meio da conta de ID $[geral_informacao_generica].
Ao longo desses anos, o requerente adquiriu diversos itens de personalização e performance de seus personagens, sobretudo a moeda do jogo (diamantes), utilizada na formação desse patrimônio eletrônico, como se vê, à guisa de exemplo, das inclusas movimentações financeiras, cujo valor global é impossível de ser arbitrado de antemão, conforme adiante será explicado.
Além disso, com suas inumeráveis horas de jogo, atingiu diversas conquistas, inclusive a patente de “Mestre”, a segunda mais difícil do jogo, o que garantia ao requerente reputação e reconhecimento no âmago da comunidade, inclusive por meio das Guildas que mantinha, com inúmeros seguidores.
Ocorre que, recentemente, apesar do uso escorreito do software e da ilibada reputação que mantinha com a comunidade até então, veio a ser surpreendido com o banimento definitivo de sua conta, procedido de forma unilateral e abrupta:
Perplexo, o autor contactou o suporte do jogo inúmeras vezes, esclarecendo que jamais fizera uso de qualquer “hack”, isto é, software malicioso que opera uma alteração no código do desenvolvedor, com o fim de obter vantagem indevida para o jogador, permitindo-lhe, por exemplo, enxergar inimigos por trás das paredes (“wallhack”) ou ter uma acurácia artificial em seus disparos (aim-lock, trigger, etc).
Também não fez uso de quaisquer softwares de terceiro que infringissem os termos de uso, aos quais sempre devotou o máximo respeito, incluindo-se na comunidade como jogador honesto e dedicado; um verdadeiro entusiasta do game, que jamais trapacearia ou prejudicaria seus pares ou a desenvolvedora da plataforma, sobretudo porque sabia que, se assim o fizesse, estaria arriscando perder todas as honrarias conquistadas e o patrimônio consolidado desde a versão beta do jogo.
Diante disso, à vista do prejuízo econômico acarretado ao requerente, cujo patrimônio é retido indevidamente pela ré, e do injusto banimento, realizado em desconformidade com os próprios termos de uso do jogo, de rigor a reativação das contas ou, subsidiariamente, a restituição do patrimônio eletrônico, conforme se passar a fundamentar.
DO DIREITO
I. DA APLICAÇÃO DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR E DA INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA
Dispõem os artigos 2° e 3° do Código de Defesa do Consumidor que é consumidor a pessoa física que utilize produto ou serviço como destinatário final, e fornecedor, pessoa jurídica, nacional ou estrangeira, que desenvolva, entre outras, atividade de comercialização de produtos e prestação de serviços.
E, de fato, in casu, dúvida não há de que devidamente caracterizados o consumidor e o fornecedor, bem como a relação consumerista, fundada na vulnerabilidade, que atrai o microssistema protetivo.
Primeiro, porque o requerente contratou o serviço, ora caracterizado como a disponibilização do software do jogo e todos os recursos a ele inerentes, bem como adquiriu inúmeros produtos comercializados pela ré, e o fez na condição de destinatário final, a saber, para uso e proveito próprio.
Segundo, porque a ré é, justamente, quem, na condição de fornecedor, oferece e gerencia o jogo, bem como o guarnece com os servidores e ferramentas inerentes ao desenvolvimento das partidas e demais atividades existentes no universo do game, auferindo lucros bilionários com propagandas, royalties, direitos de transmissão, comissões sobre as transações realizadas dentro do game e tantos outros rendimentos, próprios a qualquer forma de negócio moderna.
Inclusive, seus serviços são muito bem conceituados na seção 1.2 dos termos de uso:
“1.2 Os "Serviços" que fornecemos ou disponibilizamos incluem (a) o Site, (b) os serviços fornecidos pelo Site e pelo software cliente da Garena disponibilizado no Site e (c) todas as informações, páginas vinculadas, recursos, dados, textos, imagens, fotografias, gráficos, músicas, sons, vídeos, mensagens, rótulos, conteúdo, programação, softwares, serviços de aplicativos (incluindo, sem limitação, quaisquer serviços de aplicativos para dispositivos móveis) ou outros materiais disponibilizados no Site ou em seus serviços relacionados ("Conteúdo"). Quaisquer recursos novos adicionados ou que aumentem os Serviços também estão sujeitos a estes Termos de Serviço.”
Terceiro, porque, a teor do art. 4°, I, do CDC, a vulnerabilidade é evidente.
Com efeito, a vulnerabilidade é conceito que, a um só tempo, caracteriza e justifica a relação de consumo, legitimando a aplicação do CDC.
No caso em apreço, nítido é que a relação mantida entre o jogador e a ré não é paritária.
Uma, porque o consumidor é tecnicamente vulnerável, já que não dispõe do conhecimento técnico, no caso, dos meandros tecnológicos, para compreender a forma como os serviços são prestados.
Duas, porque é economicamente vulnerável, já que não tem condições financeiras ou poder de barganha para estabelecer uma relação paritária com uma empresa internacional de receitas bilionárias e está sujeita aos seus abusos.
Três, porque é juridicamente vulnerável, porquanto não tem o jogador condições de fazer prevalecer sua vontade na relação com a ré, e seus termos são impostos de forma unilateral, no interesse exclusivo do provedor da aplicação, por meio de termos de uso equiparáveis a um contrato de adesão.
Assim, de rigor o reconhecimento da relação de consumo.
Além disso, em atenção à regra do art. 6, VIII, do CDC, forçoso o reconhecimento da hipossuficiência dos requerentes e da verossimilhança de suas alegações para efeito de inversão do ônus da prova.
Afinal, não bastasse a vulnerabilidade que caracteriza a própria relação, certo é que a distribuição estática do ônus da prova acarretaria grave prejuízo à defesa dos direitos dos requerentes.
Isso porque a ré mantém – conforme, aliás, expressamente o declara nos termos de uso – todos os registros dos jogadores, como números de IP’s, IMEI’s, os ID’s de suas contas, registros de acesso, de internet, localização, transações, pagamentos, vendas e toda sua atividade no jogo.
Evidente, portanto, que à ré é muito mais fácil fazer prova contra o requerente, justamente com uso desses dados, do que o autor, que não têm acesso a tais registros e sequer aos motivos ensejadores do banimento – e inclusive encontra-se proibido de acessar o jogo – provar os fatos constitutivos de sua pretensão.
Deste modo, requer-se o reconhecimento da relação de consumo e a aplicação da regra da inversão do ônus da prova, forte no art. 6°, VIII, do CDC.
II. DA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA COMUM: IMPOSSIBILIDADE DE LIQUIDAÇÃO DO PEDIDO E PROVA TÉCNICA
A anteceder, ainda, diagnose do mérito da pretensão, convém destacar a competência da justiça comum para processamento da demanda.
Como já narrado, o patrimônio eletrônico do autor, que é objeto da pretensão adiante esquadrinhada, é constituído por investimentos realizados em moeda oficial, por meio de pagamentos via cartão crédito.
Sucede que, uma vez inserido no jogo, o patrimônio do jogador transforma-se em bens virtuais (itens de personalização, passes, recursos etc), que respeitam uma cotação gerenciada pela desenvolvedora do game e variável conforme a oferta e demanda dos outros jogadores.
Considerando, porém, que o autor não tem acesso aos parâmetros utilizados pela desenvolvedora para essa conversão da capital, é-lhe impossível, de antemão, quantificar o valor, em real, de seu patrimônio.
Além disso, como o autor foi excomungado da plataforma, perdeu acesso ao seu inventário e aos dados da conta, não podendo sequer arrolar os bens virtuais adquiridos.
E, uma vez que proibida condenação ilíquida em sede de rito sumaríssimo (art. 38, parágrafo único, Lei n° 9.099/95), tem-se por forçoso o processamento da demanda perante esta MM. Vara.
Por fim, como o banimento se funda numa alteração de programação provocada por software de terceiro, é provável a necessidade de se periciar os servidores da ré, a fim de identificar as razões de sua decisão, prova técnica cuja produção é incompatível com a alçada dos Juizados Especiais (Enunciado n° 54 do FONAJE e art. 3°, caput, Lei n° 9.099/95).
III. DA EXIBIÇÃO DE DOCUMENTOS
Como afirmado, o autor perdeu acesso à conta e todos seus registros; após o banimento, suas reclamações foram feitas perante o suporte do game, porém, a ele também não tem acesso.
Seu intuito era, sobretudo, tomar conhecimento das causas que justificaram o banimento e das provas que embasaram a decisão da desenvolvedora, até o momento não reveladas.
Na forma do art. 396 do CPC, o juiz pode determinar à parte que exiba documento que se encontra em seu poder.
Os art. 397 enumera os requisitos do pedido da ordem de exibição. Vejamo-los.
Quanto à individuação, os documentos a que precisa ter acesso são os seguintes:
cópias das comunicações abertas pelo autor com a desenvolvedora e o suporte
itens do inventário do autor, com individualização de cada bem e seu valor de mercado
evidências encontradas na programação do game que embasam o banimento
A finalidade reside no fato de a apresentação de tais documentos SER A ÚNICA FORMA de provar que o banimento foi indevido e o autor jamais infringiu os termos de uso.
Por fim, é evidente que tais documentos se encontram em poder do réu, afinal, é o desenvolvedor do jogo e que, inclusive para mantê-lo em funcionamento, necessita armazenar os dados elencados anteriormente.
Assim, de rigor seja deferido o pedido de exibição de documento, a fim de determinar ao réu que apresente, nos autos, os documentos acima elencados.
IV. DOS TERMOS DE USO
Superada a questão da regência legislativa, convém destrinchar a própria conduta imputada ao requerente, a ilegalidade do banimento e os prejuízos que lhes foram carreados.
Ao que tudo indica, a ré imputou ao requerente o uso, em tese, de “hacks” ou “cheats”, isto é, de trapaças, assim entendidos os mecanismos eletrônicos clandestinos, instalados no celular, que dão vantagens ao jogador.
De início, salta aos olhos que os termos de uso não definem, com precisão, conduta análoga à imputada aos requerentes e que possa justificar a exclusão da comunidade.
Com efeito, os itens c e d da seção 5.3 dos termos de uso veda comportamentos fraudulentos ou prejudiciais a outros jogadores, contudo, a proibição carece de definição objetiva que permita sua aplicação no caso em análise.
Isso, sobretudo, porque nada foi revelado acerca do suposto hack utilizado, tampouco a forma como ou em que medida caracteriza fraude ou prejuízo aos demais jogadores.
De outra ponta, apesar da descrição da “hipótese normativa” ou do “fato típico”, não há definição da “consequência jurídica”.
Compulsando os termos de uso, vê-se que, embora expressos os comportamentos proibidos, não são previstas suas sanções, tampouco critérios e procedimentos para aplica-las.
Há, assim, primeiro, grave violação ao direito de informação do consumidor (art. 6°, III, CDC), já que a omissão das consequências dos atos, em tese, proibidos, afeta a transparência da relação contratual e impede que o jogador saiba, de antemão, as consequências de seus atos.
Outrossim, à vista do princípio da relatividade contratual e da pacta sunt servanda, difícil se torna, na falta de previsão das consequências, cogitar da existência de um poder disciplinar implícito que autorize à ré encerrar a prestação do serviço na forma como lhe aprouver e pelas razões que lhe calharem.
Ainda, de ser ver que referida sorte de omissão atenta frontalmente contra os deveres contratuais de transparência, lealdade, probidade e boa-fé, sobretudo porque busca estabelecer vantagem desproporcional e arbitrária a um dos contratantes, em detrimento de sua contraparte, o que não se pode admitir, qual seja a natureza do contrato.
Considerando que o contrato de adesão deve ser interpretado em favor do aderente (art. 423 do Código Civil c/c art. 47 do Código de defesa do Consumidor), não parece razoável que a omissão quanto às consequências seja uma autorização geral para exclusão arbitrária, discriminatória e imotivada dos membros da comunidade.
A rigor, o mais adequado, mesmo à luz da razoabilidade e da proporcionalidade, seria previamente avisar o jogador do uso ilícito de sua conta ou aplicar sanções de menor severidade, sobretudo quando não demonstrada a gravidade da infração ou a reincidência de jogador.
À vista do que se expôs, faz-se evidente que a exclusão dos requerentes se deu ao largo dos próprios termos de uso que disciplinam a prestação de serviço e atenta contra os princípios basilares do direito contratual, razão por que não pode prevalecer.
V. DA AUSÊNCIA DE DEFESA: VIOLAÇÃO AO DIREITO DE INFORMAÇÃO
Como já relatado, o banimento se deu de forma súbita, sem prévia ciência do jogador.
Além disso, apesar dos apelos do requerente, a ré não aclarou, efetivamente, qual o tipo de trapaça que justificou o banimento.
Evidente, porém, que a justificativa não convence e a reação da ré, na forma como procedida, viola direitos básicos do consumidor.
a) devido processo legal, contraditório e ampla defesa: eficácia horizontal dos direitos fundamentais e aplicação também em âmbito privado
Na forma do art. 5°, inciso LV, da Constituição, aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.
Trata-se, com efeito, de postulados mais comumente vinculados ao âmbito de atuação do Poder Judiciário e procedimentos de repartições públicas.
A rigor, porém, a densidade normativa desses preceitos transcende a estreita órbita do processo judicial e, direito fundamental que é, projeta-se, como garantia, sobre todo e qualquer procedimento cognitivo e sancionatório, ainda que travado entre particulares.
De igual modo, dispõe a Constituição, em seu art. 5°, inciso LIV, que ninguém será privado de sua liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.
O conceito de liberdade há de ser interpretado de forma ampla, não se limitando à liberdade de locomoção, mas também abrangendo a de expressão, a de credo, a de patrimônio, a contratual, artística, e todas as demais protegidas pela ordem jurídica; de forma similar, o conceito de bens também se elastece, transcendendo a dogmática civilista e atingindo bens incorpóreos, imateriais, intangíveis e a própria integridade física e psíquica, a honra a imagem e a dignidade.
À vista da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, o devido processo legal torna-se, portanto, condição para aplicação de qualquer medida em detrimento da contraparte, que lhe atinja o patrimônio, suas liberdades, honra, dignidade ou qualquer outro atributo da personalidade, direito ou garantia.
O Supremo Tribunal Federal, no RE n° 158.215/RS, Relatado pelo E. Min. Marco Aurelio, decidindo acerca da necessidade de observância do devido processo legal na hipótese de exclusão de cooperado, assentou a premissa de eficácia horizontal dos princípios processuais constitucionais, in verbis:
DEFESA - DEVIDO PROCESSO LEGAL - INCISO LV DO ROL DAS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS - EXAME - LEGISLAÇÃO COMUM. A intangibilidade do preceito constitucional assegurador do devido processo legal direciona ao exame da legislação comum. Daí a insubsistência da óptica segundo a qual a violência à Carta Política da República, suficiente a ensejar o conhecimento de extraordinário, há de ser direta …